A era dos extremos já chegou ao Brasil

Maior enchente da história de Porto Alegre foi registrada em maio de 2024/Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Além de ter entrado para a história como o ano mais quente e de ter ultrapassado pela primeira vez o limite de 1,5°C, 2024 marcou a intensificação dos eventos climáticos extremos no Brasil.

Os episódios de ondas de frio e de calor, de chuvas intensas que deflagraram deslizamentos de terra e inundações/enxurradas, secas e novos recordes de temperaturas máximas foram sintetizados a partir de dados de diferentes instituições e compilados pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), unidade de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), em uma nota técnica intitulada ‘Estado do clima, extremos de clima e desastres no Brasil em 2024’.

Para a diretora interina do Cemaden, Regina Alvalá, o conjunto de dados sintetizados na Nota permite conhecer regiões e municípios que foram impactados por eventos extremos em 2024 e contribui para subsidiar diferentes ações e estratégias de mitigação. “Estas informações são relevantes no contexto de diferentes setores estratégicos do país”, afirmou.

Enquanto o mundo registrou temperaturas 0,72oC mais altas, na América Latina e no Caribe ficou 0,95oC acima do normal, comparado com o período de 1991-2020, segundo dados do Copernicus. No Brasil, o aquecimento foi de 0,79ºC, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). A maior parte do Brasil registrou anomalias de temperatura acima de 2°C.

“O ano de 2024, o mais quente da história, apresentou os maiores desastres climáticos. A grande seca na Amazônia-Pantanal e as inundações no Rio Grande do Sul indicam que a era de extremos já chegou ao Brasil”, avalia o pesquisador do Cemaden e um dos autores, José Marengo. Para ele, os impactos são maiores, uma vez que junto com o aumento de extremos também há aumento na exposição e na vulnerabilidade das pessoas. “O risco de desastres está aumentando”, explicou.

Os eventos extremos, como secas mais severas e inundações, assim como ultrapassar 1,5°C de temperatura média global entre 2040 e 2050, eram previstos nas projeções de longo prazo. Contudo, ocorreram muito antes.

“Estamos numa nova normal climática, e indo contra o Acordo de Paris. Assim não dá tempo para esperar, e o Acordo de Paris precisa ser implementado em todos os países do mundo. Ninguém está livre de um desastre associado a um extremo climático”, cita o pesquisador, que destaca exemplos de deslizamentos de terra como consequência das chuvas em regiões de periferia, e os incêndios, potencializados por seca e ventos secos e quentes, que devastaram bairros em regiões nobres na Califórnia.

Parte desse cenário é atribuída ao fenômeno El Niño, que aquece a superfície das águas na região equatorial do oceano Pacífico e altera padrões de chuva e temperatura. Porém, a mudança do clima decorrente do aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera teve um papel significativo em alimentar os eventos extremos, conforme apontam estudos do World Weather Attribution (WWA).

Diante desse cenário, previsto e alertado pelos cientistas há cerca de 30 anos, Marengo destaca a necessidade de avançar na prevenção e não apenas agir após os desastres. “É necessário que a população e os governos tenham uma percepção sobre desastres. Se alguém mora em área vulnerável e de alto risco de desastres, quando se tem chuvas intensas deve estar atento para sair das suas casas. Isso pode salvar vidas”, exemplificou.

Veja os principais fenômenos registrados ao longo de 2024 no Brasil:

  • Ondas de calor e temperaturas máximas – Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) confirmaram 2024 como o ano mais quente desde 1961. Todos os meses do ano passado apresentaram temperaturas acima da média histórica, comparado com o período 1991-2020. No dia 06 de outubro, as cidades de Goiás (GO) e Cuiabá (MT) registraram as maiores temperaturas máximas, respectivamente, 44,5°C e 44,1°C.

Segundo a Nota, entre 9 e 10 episódios de ondas de calor afetaram o Brasil em 2024. Entre o final de agosto e início de setembro, as temperaturas ficaram 7°C acima do normal para o período em Belo Horizonte (MG) e Brasília (DF), e até 6°C acima do normal em Manaus (AM).

  • Ondas de frio – O país também registrou ondas de frio entre maio e agosto, em especial na primeira quinzena de agosto no Sul, que estabeleceu novos recordes de baixas temperaturas. Na cidade de Urupema, foi registrado neve com temperatura de –4,6ºC. Na sequência, o calor retornou com intensidade. O inverno foi o segundo mais quente desde 1961, atrás apenas de 2023.
  • Chuvas e impactos – Enquanto déficits de chuva entre -200 a -400 mm foram observados na Amazônia, centro-oeste e sudoeste da Amazônia-Pantanal, no leste do Brasil e no estado do Rio Grande do Sul as anomalias positivas de precipitação foram de +400 mm durante o primeiro semestre de 2024. O contraste entre as regiões observado é típico de padrão de fenômenos El Niño.

A cidade de Mimoso do Sul (ES) registrou entre 300 mm e 600 mm de chuva em 48 horas (22 e 23 de março), o que culminou em enchentes e enxurradas que provocaram a morte de 20 pessoas.

De acordo com dados da Nota, o impacto das inundações que afetaram 478 dos 497 municípios gaúchos em maio, atingindo quase 2,4 milhões de pessoas e provocando 183 mortes e 27 desaparecidos, tem o custo estimado da limpeza de 3,7 bilhões de dólares, enquanto o impacto econômico foi de cerca de 16 bilhões de dólares (1,8% do PIB do estado de 2024).

Em outubro, a cidade de São Paulo (SP) e a região metropolitana registraram uma sequência de episódios de tempestades acompanhadas de ventos. O mais impactante ocorreu em 12 de outubro, quando a tempestade e ventos acima de 107 km/h forçaram o fechamento dos dois aeroportos mais movimentados do país. Um apagão deixou 2,1 milhões de pessoas sem energia na região metropolitana. O evento climático foi consequência de um ciclone extratropical que se desenvolveu na costa dos estados do Sul do país.

  • Seca – As condições de seca se tornaram mais frequentes e severas no Brasil a partir de 1990. Porém, em 2024 o país registrou a seca mais intensa. A falta de chuvas no ano anterior contribuiu para a situação. Entre julho e setembro, o número de municípios em condição de seca severa e extrema, saltou de 239 para 1,4 mil, ou seja, aproximadamente 25% dos municípios brasileiros foram afetados. Em parte de alguns municípios nos estados do Acre, Amazonas, Pará, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná observou-se condição de seca excepcional. A situação foi revertida a partir de novembro.

A capital federal experimentou 155 dias secos consecutivos, sendo o segundo período mais longo da história, atrás de 1963 quando foram registrados 163 dias.

Na bacia Amazônica, os níveis muito baixos afetaram a capacidade das comunidades vizinhas de pescar e transportar mercadorias para o abastecimento local e o escoamento da produção local para venda. O Rio Negro em Manaus registrou 12,11 m em 10 de outubro, o nível mais baixo já observado desde quando as medições começaram em 1902; o Rio Madeira, em Porto Velho (RO) registrou 0,41 m em 14 de setembro, o nível mais baixo desde 1967. O rio Solimões, em Tabatinga (AM), e o rio Amazonas em Óbidos (PA) também reduziram significativamente.

O Rio Paraguai atingiu apenas 0,62 m em 8 outubro, o menor nível histórico, desde o início do monitoramento em 1900. Nas estações de medições de Ladário e de Porto Murtinho houve quebra de recordes mínimos.

  • Incêndios – Em 2024, foram detectados cerca de 1 milhão de incêndios ativos na América Latina, sendo que mais de 47,7% foram no Brasil. A baixa umidade do ar e temperaturas mais altas, favoreceram a propagação de incêndios. O risco foi elevado nas regiões da Amazônia e do Pantanal.
  • Desastres e impactos – Segundo informações da Secretaria Nacional de Defesa Civil, 578 municípios brasileiros relataram danos e prejuízos significativos. Para danos materiais, que incluem unidades habitacionais, instalações e obras de infraestrutura públicas danificadas ou destruídas, o custo estimado alcançou aproximadamente R$ 11 bilhões. Os prejuízos econômicos, que englobam impactos públicos e privados somaram cerca de R$ 9,6 bilhões.
  •  Em termos de danos humanos, aproximadamente 1 milhão de pessoas foram diretamente afetadas pelos eventos, com destaque para as inundações de maio de 2024 no Rio Grande do Sul que responderam por 83% desse número. Os impactos no estado foram severos, contabilizando 183 vítimas fatais, 27 desaparecidos, 18.864 feridos e enfermos, 121.878 desabrigados e 834.645 desalojados.

A Nota expõe preocupação sobre a vulnerabilidade da educação aos desastres, com destaque especial para a população infantil e jovem. “A educação precisa ser entendida pelas autoridades públicas e demais atores responsáveis pela gestão de riscos de desastres como um dos pilares sociais mais sensíveis aos efeitos das ameaças socioambientais e como um elo fundamental nos programas de adaptação às mudanças climáticas”, cita um trecho do texto.

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