NUCLEAR
Ameaça às margensdo São Francisco
Inês Campelo e
Sérgio Miguel Buarque
Marco Zero Conteúdo
O medo de Evani, que é compartilhado por grande parte dos moradores de Itacuruba, tem nome e sobrenome: Central Nuclear do Nordeste. Os temores em relação à implantação de uma usina no município começaram a ganhar forma em janeiro de 2011, quando um documento da Eletronuclear denominado “A rota de expansão da energia nuclear brasileira” colocava Itacuruba como primeira opção para receber uma usina atômica. A justificativa era de que a cidade apresentava “baixa densidade populacional, oferta de água para resfriar os reatores, solo estável e proximidade das linhas de transmissão de energia”.
Em 2019, com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República e a posse do almirante Bento Albuquerque no Ministério de Minas e Energia, o programa nuclear brasileiro volta a ter protagonismo. O novo ministro declara a pretensão de retomar as obras de Angra 3 e o plano de construir entre quatro e oito novas usinas nucleares no país. Baseado no Plano Decenal de Energia 2031, planejamento do governo federal para os próximos dez anos na área energética, Bento Albuquerque estima que até 2027 começarão as obras da quarta usina nuclear brasileira.
Segundo Bento Albuquerque, em reportagem publicada pelo Poder 360 no início de novembro, o Ministério de Minas e Energia, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel) já deram início a estudos complementares para novos sítios nucleares no País. O município escolhido, tendo Itacuruba como favorita, receberia em seu território um complexo nuclear, composto por seis usinas, com uma potência instalada de 6.600 MW, a um custo total de 30 bilhões de dólares.
Inês Campelo e
Sérgio Miguel Buarque
Marco Zero Conteúdo
Escala Internacional de Acidentes Nucleares e Radiológicos
Estabelece uma escala de gravidade de incidentes e acidentes nucleares. Ao todo são 7 níveis, sendo os 3 primeiros de incidentes e os 4 subsequentes acidentes. O acidente mais grave ou superior (nível 7) consiste no vazamento em larga escala, para fora da usina, de material radioativo, com efeitos amplos sobre a saúde da população e do meio ambiente. Sendo reconhecido nos níveis 6 e 7 os acidentes de Chernobyl, na Ucrânia (1986), o de Three Mile Island na Pensilvânia-USA (1979), e o de Fukushima no Japão (2011).
Linha do tempo
A rota da energia nuclear no Nordeste
Agosto de 2009
Janeiro de 2011
Agosto de 2013
Julho de 2018
Janeiro de 2019
Março de 2019
Abril de 2019
Junho de 2019
Dezembro de 2020
Novembro de 2021
Durante reunião anual da Abdan (Associação Brasileira para Atividades Nucleares), Bento Albuquerque afirma que as obras da 4ª usina nuclear do País devem começar antes mesmo da conclusão de Angra 3, que tem previsão para entrar em operação até 2027.
Valdeci Ana dos Santos Nascimento, liderança quilombola | Foto: Inês Campelo
Silêncio como estratégia
Desde as primeiras especulações, as notícias sobre a construção de uma usina nuclear em Itacuruba sempre chegaram pela imprensa ou por meio de informações truncadas. Por parte do governo – federal, estadual ou municipal – sempre houve o silêncio absoluto. A população local também nunca foi consultada. “Nós nunca tivemos um diálogo. Nunca ninguém sentou com a gente para falar a respeito da usina nuclear”, afirma Valdeci Ana dos Santos Nascimento, liderança do quilombo Poço dos Cavalos, comunidade que seria diretamente impactada pelo projeto.
Se falta diálogo e informações oficiais, sobram indícios de que Itacuruba já se prepara para receber o complexo nuclear. Uma área, dentro do território reivindicado pelo povo Tuxá, é constantemente medida, analisada e já foi até cercada. “Tem até uns drones que de vez em quando voam por lá”, relata a cacique Evani, que mora bem próximo do local. “Eles pretendem construir dentro do território Tuxá Campos. O mundo inteiro tem que saber que eles querem construir esse complexo nuclear dentro do Rio São Francisco”.
Área que de acordo com as lideranças locais está destinada para instalação do complexo nuclear | Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo
Os primeiros e principais atingidos pela construção de uma usina nuclear seriam os povos tradicionais que habitam a região há bastante tempo. No município de Itacuruba, estão os quilombos Negros de Gilu, Ingazeira e Poço dos Cavalos e os povos indígenas Pankará Serrote dos Campos, Tuxá Campos e Tuxá Pajeú. Além deles, ainda existe a presença de pescadores artesanais e pequenos agricultores espalhados pela zona rural. “A preocupação da gente, enquanto morador, de quem está próximo de um empreendimento desse, é você dormir e de manhã não poder nem acordar ou acordar com o desastre acontecendo”, lamenta Valdeci.
Por conta do risco iminente, foram as comunidades tradicionais as primeiras a se mobilizarem para tentar impedir a instalação da usina em Itacuruba. Junto com várias instituições e organizações da sociedade civil, criaram a Articulação Sertão Antinuclear, que vem realizando várias ações para mostrar os perigos da implantação do complexo nuclear e os impactos de um eventual acidente.
EU QUERO FICAR
Os problemas com a implantação de um complexo nuclear, óbvio, vão além dos riscos de acidentes e impactos ambientais gerados pela instalação e operação de seis reatores. Para os povos tradicionais que vivem em Itacuruba, o projeto representa a perda do território, das raízes históricas, de vínculos culturais e afetivos. Com a implantação da usina, essas populações estariam dentro das Zonas de Planejamento de Emergência (ZPE), que são áreas vizinhas aos reatores, delimitadas por raios de 3 km, 5 km, 10 km e 15 km, a partir do edifício do reator e teriam que deixar suas casas.
Representa também a repetição de um pesadelo, como o que os antigos moradores viveram com a construção da Hidrelétrica Luiz Gonzaga. Em 1988, eles foram obrigados a deixar suas casas que acabaram cobertas pelo lago de Itaparica. Assista ao vídeo para entender melhor essa história.
Produção de energia
nuclear no Brasil
ANGRA 1
capacidade para geração de 640 megawatts
ANGRA 2
capacidade para geração de 1.350 megawatts
Estas duas usinas respondem pela geração de 3% da energia elétrica consumida no Brasil.
ANGRA 3
(em construção)
prevê a geração de 1.405 megawatts
COMPLEXO NUCLEAR DO NORDESTE (projeto)
prevê a geração de 6.600 megawatts
O Plano Nacional de Energia 2050 contempla a geração de até 10 gigawatts de energia nuclear nos próximos 29 anos.
Energia do futuro?
Os partidários da implantação de usina nuclear no sertão pernambucano defendem que o projeto irá trazer “desenvolvimento e gerar emprego”, além de ser uma energia mais barata e confiável que a eólica ou solar. Argumentam que é um processo seguro (acidentes são raros e os equipamentos estão em constante evolução), que a energia nuclear é uma fonte limpa de geração elétrica, por não emitir gases de efeito estufa. A Marco Zero já publicou reportagem aprofundando este debate.
Mas esses argumentos não convencem o pessoal da Articulação Sertão Antinuclear. Muito pelo contrário. “Os estudiosos, em sua maioria, só apresentam os benefícios. E os malefícios? E os direitos que estão sendo negados?”, questiona a cacique Lucélia. Para a Articulação, existe uma extensa lista de problemas e impactos negativos que a instalação do complexo nuclear traria na vida das pessoas.
20 milhões de impactados
“Temos um impacto imediato que somos nós. Mas esse não é um problema só de Serrote dos Campos, só do povo Tuxá Campos, só do povo quilombola Poço dos Cavalos, só dos pescadores que estão à margem do rio aí tentando sustentar suas famílias. É um problema que pode sim chegar a outros municípios, que pode agravar a situação de toda a população que bebe do Rio São Francisco”, explica Lucélia Leal Cabral, cacique da Aldeia Serrote dos Campos do povo Pankará e uma das integrantes da Articulação Sertão Antinuclear.
Mas os impactos de uma usina nuclear, claro, não ficariam restritos a Itacuruba. Whodson Silva e Vânia Fialho, em um artigo publicado na revista Anthropológicas (2020), analisaram o projeto da Central Nuclear do Nordeste, que ficou disponível no site da Eletronuclear até julho de 2018, quando foi retirado do ar. Além de ratificar a escolha de Itacuruba, o documento listava outros municípios diretamente impactados: Belém do São Francisco (PE), Rodelas (BA), Floresta (PE), Cabrobó (PE), Salgueiro (PE), Serra Talhada (PE), Petrolândia (PE) e Paulo Afonso (BA).
Em um eventual acidente nuclear, a área impactada seria ainda maior do que os municípios do entorno de Itacuruba. O professor Heitor Scalambrini, graduado em Física, mestre em Ciências e Tecnologia Nuclear e doutor Energética, acompanha de perto o debate em torno da instalação dos reatores no sertão pernambucano. Segundo ele, a contaminação radioativa, caso haja vazamento, seria gravíssima. “Contaminaria um rio (São Francisco) que percorre cinco estados, e atende a mais de 500 municípios ao longo de sua bacia. Estamos falando de algo em torno de 20 milhões de pessoas impactadas. Sendo que esta região concentra 28% da população brasileira, e 15% do PIB (Produto Interno Bruto)”.
“A liberação de radiação atingiria a água do rio. O gás em função das condições atmosféricas poderiam ser espalhados a várias centenas e mesmo milhares de quilômetros, atingindo as aves e animais e populações ribeirinhas. Além de se infiltrar no solo, inviabilizando a agricultura e criação de animais, podendo atingir e contaminar o lençol freático. Desequilibraria todo o ecossistema local. A pesca seria afetada, e toda renda proveniente desta atividade desapareceria da noite para o dia”, escreveu Heitor no artigo ”E se houvesse um acidente nuclear em uma usina instalada no Rio São Francisco?”, publicado no site do Instituto Humanitas Unisinos.
Uma energia cara…
O professor Heitor Scalambrini discorda que a energia nuclear seja mais barata do que as renováveis. Segundo ele, o mais recente Relatório Anual da Indústria Nuclear Mundial (WNISR) aponta para os custos da energia nuclear entre US$ 112 e US$ 189 por MWh (MegaWatt-hora). Enquanto a energia eólica se situa entre US$ 29 e US$ 56 por MWh, e a energia solar fotovoltaica entre US$ 33 e US$ 44 por MWh.
Existem outros custos envolvidos no processo e que precisam ser considerados. Um deles é o “descomissionamento”, ou seja, a desmontagem de uma usina nuclear depois de esgotada sua vida útil.
Segundo José Júnior Karajá, geógrafo e assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da Região Nordeste, em entrevista ao site Instituto Humanitas Unisinos, esse é um processo complexo, caro e perigoso. “Dada a grande quantidade de resíduos radioativos presentes em diversos espaços dos edifícios, seu desmonte requer um intenso trabalho de descontaminação, acondicionamento apropriado e armazenamento de forma segura, para evitar vazamentos de radiação e, consequentemente, contaminação do ambiente no seu entorno”. Como esses custos não são considerados nos custos totais da obra, no final acabará implicando no aumento das tarifas de energia.
… E poluente
Esqueça a história de que uma usina nuclear produz energia limpa. Sérgio Xavier, consultor sênior do Centro Brasil no Clima e ex-secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco, explica que existe um processo complexo para a produção desse tipo de energia que envolve mineração dos elementos radioativos, transporte, moagem, produção de óxido de urânio, enriquecimento (mudança dos átomos), construção de reatores, estruturas com milhares de toneladas de aço e concreto, depósito de lixo nuclear, descontaminação de velhos reatores etc. “Portanto, é mito pensar que as usinas nucleares não emitem CO2”.
O urânio é a matéria-prima para a fabricação do combustível que abastece as usinas nucleares e o processo de mineração gera muito impacto no ambiente, na saúde dos trabalhadores e da população próxima às minas. No Nordeste, a mineração é feita nos municípios baianos de Caetité e Lagoa Real. Dados da Secretaria de Saúde da Bahia mostram casos de câncer, acima da média, na população local provocados pelo contato com a radiação e danos ainda pouco conhecidos ao meio ambiente.
Só entre 2000 e 2009, segundo reportagem da BBC News Brasil, houve pelo menos cinco acidentes que contaminaram parte dos rios e solo da região, de acordo com um relatório da Secretaria de Saúde da Bahia. (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50077223 )
A INB (Indústrias Nucleares do Brasil) explorou a área até 2014. Neste período, foram produzidas 3.750 toneladas de concentrado de urânio. Desde a exaustão dos recursos passíveis de lavra a céu aberto no local, as atividades de mineração estavam paralisadas. Em dezembro de 2020, o governo federal retomou a produção de urânio em uma nova área de Caetité. A expectativa é que sejam produzidas 260 toneladas de concentrado de urânio por ano, quando a Mina do Engenho atingir a sua capacidade plena, o que deve ocorrer em 2022.
Além da mineração, existe a questão dos resíduos produzidos pelas usinas. “O lixo atômico, gerado continuamente pelas usinas, precisa ser transportado e armazenado com máxima segurança, por milhares de anos, até que cesse toda a radiação. Hoje não existe uma tecnologia testada para durar milênios”, lembra Sérgio Xavier.
José do Nascimento pesca no lago formado pela hidrelétrica de Itaparica, a uns 200 metros de sua casa | Foto: Inês Campelo
Água Quente
Uma usina nuclear precisa de água. Muita água, para resfriar o reator. Estar localizada às margens do Lago de Itaparica é um fator determinante para o município do sertão pernambucano aparecer como primeira opção para implantação do complexo de seis reatores. O uso da água do São Francisco, por sinal, tem sido um dos motivos de maior preocupação por parte dos moradores da cidade.
Os reatores de uma usina nuclear necessitam de água abundante para serem resfriados ininterruptamente. O superaquecimento causaria uma explosão, liberando radiação. No caso da usina em Itacuruba, a água seria captada no Lago de Itaparica, resfriaria os reatores e voltaria para o lago, seguindo pelo rio. O problema é que essa água retornaria com temperaturas de 4 a 5 graus mais alta, o que pode provocar interferências na flora e na fauna do lago, desestabilizando todo seu ecossistema. A caique Evani resume o que o rio significa para as comunidades tradicionais. “Pra gente o São Francisco é vida! Se ele acabar…”
O aquecimento da água, por sinal, já é um fenômeno que vem sendo percebido pelos pescadores da região mesmo antes da provável instalação da usina. Essa variação de temperatura afeta diretamente na quantidade de peixes. José Filho do Nascimento mora no Sítio Pedra d’Água, em Petrolândia, cidade vizinha a Itacuruba. Ele pesca no lago formado pela hidrelétrica de Itaparica, a uns 200 metros de sua casa, e tem sentido na prática os impactos da variação climática na sua vida.
No dia em que conversou com a reportagem da Marco Zero, José estava saindo do seu barco já no fim de uma tarde de quarta-feira com muito sol. Estava com a sacola quase vazia. “A água tá baixa e muito quente. Os peixes desaparecem”. Ele pesca principalmente pirambebas, uma espécie de piranha que habita o Rio São Francisco, mas nesse dia não pegou nenhuma. Para José, a relação é direta: quanto mais quente a água, menos peixe na panela.