Entrevista: pesquisadora fala sobre desafios e avanços na conservação dos manguezais no litoral paranaense

As atividades ganham força por meio de um trabalho em rede, que conecta diversos atores/Foto: Reginaldo Ferreira/Divulgação SPVS

Por Claudia Guadagnin

O litoral do Paraná abriga uma das maiores áreas de manguezais bem conservadas do Brasil. Essas áreas são essenciais para a biodiversidade e a manutenção do equilíbrio ambiental.

Desde a década de 1990, com o apoio de múltiplos parceiros, a SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental) lidera esforços contínuos em um projeto de restauração ecológica, pioneiro na região, e reconhecido como um dos mais longevos em curso no país. Ele combina a agenda de desenvolvimento regional, com ciência, inovação e compromisso com a conservação da biodiversidade.

No começo dos anos 2000, a partir de investimentos de empresas privadas, antigas fazendas de búfalos degradadas foram adquiridas pela instituição e transformadas em três Reservas Naturais: Reserva Natural Guaricica, Reserva Natural das Águas, ambas em Antonina, e Reserva Natural do Papagaio-de-Cara-Roxa, em Guaraqueçaba. Juntas, elas somam 19 mil hectares de Mata Atlântica em permanente processo de regeneração, que geram incontáveis benefícios ambientais, sociais e econômicos, especialmente, para os municípios onde estão localizadas e para o seu entorno.

A partir de dezembro de 2023, com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por meio do Programa Floresta Viva, em parceria com a Petrobras e com o gerenciamento dos recursos realizado pelo Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO), os trabalhos de restauração dessas áreas ganharam mais fôlego para ter suas ações de conservação expandidas, incluindo uma agenda para o monitoramento dos manguezais na região da Reserva Natural do Papagaio-de-cara-roxa, em Guaraqueçaba e Reserva Natural Guaricica em Antonina.

As atividades ganham força por meio de um trabalho em rede, que conecta diversos atores, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pelo Programa Nacional de Monitoramento da Biodiversidade (Monitora), a Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) e a Associação Mar Brasil.

Desde 2019, a pesquisadora e professora Cassiana Baptista Metri, da UNESPAR (Universidade Estadual do Paraná), se dedica ao monitoramento desses ambientes únicos, com destaque para a Estação Ecológica de Guaraqueçaba e a Reserva Natural Papagaio-de-Cara-Roxa. O trabalho realizado pela pesquisadora reúne ciência, conservação e, também, o respeito e à valorização das comunidades locais. Seus dados alimentam o programa Monitora, do ICMBio, contribuindo para a conservação da espécie em escala nacional.

Na entrevista a seguir, Cassiana fala sobre os avanços, os desafios e a importância dos manguezais como aliados na luta contra as mudanças climáticas e em prol da preservação do equilíbrio ambiental:

Há quanto tempo você realiza o monitoramento dos manguezais na Estação Ecológica de Guaraqueçaba e na Reserva Natural Papagaio-de-Cara-Roxa? Quais avanços mais marcantes observou em cada local, e que aprendizados têm orientado suas estratégias de conservação?

Começamos o monitoramento dos manguezais e do caranguejo-uçá na região em 2019, quando aprovamos com a Associação MarBrasil o projeto Saúde dos Manguezais, e do Caranguejo-Uçá em Sítio Ramsar e seu entorno, financiado pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.

Em 2019, a parceira do projeto e professora da UNESP Marília Cunha Lignon e a consultora da MarBrasil Sarah Charlier Sarubo, marcaram quatro “transversais” para o monitoramento da vegetação de mangue, seguindo o protocolo do “Monitora Manguezais”, do ICMBio. Chamamos de “transversais” as linhas imaginárias perpendiculares ao corpo d’água, que percorrem diferentes fisionomias do manguezal, já que a vegetação vai mudando conforme a distância da água. A parte mais alagada e próxima ao corpo d’água é a franja, a parte um pouco mais elevada e banhada pelas marés mais altas é a bacia. Por fim, a parte mais seca, no limite final do manguezal, é a transição.

Para o caranguejo-uçá, utilizamos um protocolo que aplica um método não invasivo para determinar o tamanho dos caranguejos na região. Não coletamos os caranguejos, mas medimos as tocas e extrapolamos os dados para calcular o tamanho dos animais. A continuidade do monitoramento se deu pelo programa Rebimar, O Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha, da Associação MarBrasil, patrocinado pelo Programa Petrobras Socioambiental que passou a incluir o manguezal como componente, e, é claro, teve o apoio do próprio ICMBio, que participa ativamente do monitoramento.

Ao longo desses seis anos, percebemos diferenças no tamanho dos caranguejos entre os locais de monitoramento. Na Reserva Natural Papagaio-de-Cara-Roxa, da SPVS, os caranguejos são maiores do que em outras áreas. Ainda não sabemos ao certo os motivos, mas isso deve estar relacionado ao tamanho e à extensão do manguezal na reserva, bem como ao seu bom estado de conservação.

Cassiana Baptista Metri

Outro ponto importante foi um evento extremo em 2019, logo após o primeiro monitoramento, que afetou uma das parcelas localizadas no Parque Nacional de Superagui. Ventos fortes quebraram as árvores de mangue ao meio, e muitas morreram. Nos monitoramentos posteriores, observamos uma diminuição nas tocas de caranguejo nos locais afetados. A vegetação está se regenerando sozinha, mas o caranguejo ainda não se recuperou como antes do evento.

Como os dados gerados pelo projeto abastecem o programa Monitora, do ICMBio? E qual é a importância dessa contribuição para a conservação nacional e o manejo estratégico dos manguezais?

A ideia é que esses monitoramentos sejam padronizados para que possam ser comparados em nível nacional. Aqui no sul e sudeste do Brasil temos um contexto muito diferente do norte do país, por exemplo. Lá estão as maiores extensões de manguezal do mundo, que só perdem em área para a Indonésia. Quanto mais próximos à linha do Equador, maiores são as amplitudes de marés e, consequentemente, de manguezal. Nossos manguezais são naturalmente mais estreitos. Sem contar toda a degradação ocorrida nos manguezais do nordeste e boa parte do sudeste do país, onde foram devastados. Aqui no Paraná e no sul de São Paulo temos o maior remanescente contínuo de Mata Atlântica, que conhecemos por Grande Reserva Mata Atlântica, e, consequentemente, de manguezais. Por isso essa região é tão estratégica do ponto de vista dos monitoramentos. Um fator importante é o acompanhamento dos indicadores gerados numa perspectiva temporal. Esta análise temporal é fundamental, e ainda muito pouco realizado no Brasil. Os estudos que tínhamos até agora eram pontuais no tempo e no espaço. Quando estamos falando de impactos causados pelas mudanças climáticas, longas séries de dados ao longo do tempo podem ajudar a avaliar os impactos e embasar medidas de mitigação ou de adaptação.

Como a ampliação do monitoramento dos manguezais em áreas como o litoral do Paraná pode contribuir para um melhor entendimento sobre a ecologia local e reforçar as estratégias de conservação?

Um dos primeiros impactos que tive ao começar a estudar os manguezais foi perceber que, apesar de parecerem muito similares, cada manguezal é único. A declividade, a proximidade com o mar e a influência de água doce fazem toda a diferença na fauna e na flora. Cada novo ponto de monitoramento é uma conquista e uma forma de termos cada vez mais informação.

Para mim, isso demonstra como a união de esforços é fundamental para entendermos melhor esse bioma e valorizá-lo como um forte aliado frente às mudanças climáticas. Os manguezais vão nos defender de muita coisa que vem por aí.

O projeto, executado pela SPVS em parceria com a Associação Mar Brasil e o ICMBio, pretende ampliar a área de monitoramento de Caranguejo-Uçá na Estação Ecológica de Guaraqueçaba e também inserir novas áreas na APA de Guaraqueçaba, com foco nos manguezais próximos a Reserva Natural Guaricica, localizada em Antonina, PR.

Como tem sido a experiência de trabalhar com a SPVS e contribuir com iniciativas tão importantes para a conservação da biodiversidade?

Eu conheço a SPVS desde os tempos da sede no bairro Batel, em Curitiba, há muitos anos. Passava em frente, via uma placa enorme e achava muito interessante. Eu fui adolescente na época da Rio 92 e sentia que aquilo tudo era um chamado. Mais tarde, já cursando Ciências Biológicas na UFPR [Universidade Federal do Paraná], fiz uma visita à sede, ganhei cartazes e pendurei-os em meu quarto. Comecei a conhecer a região de Guaraqueçaba lendo os relatórios da SPVS. A SPVS abriu o caminho para muitas instituições e profissionais. Por este e outros motivos, para mim, é um orgulho enorme poder contribuir com este projeto.

Manguezais são essenciais para o equilíbrio ambiental. Quais serviços ecossistêmicos mais importantes você destacaria no contexto do litoral paranaense?

Eu brinco que os manguezais têm 1.001 utilidades quando pensamos nos seus serviços para o bem-estar humano. Eles fornecem serviços ecossistêmicos de provisão de alimentos, já que são berçários naturais da maioria das espécies pescadas, e qualidade da água, pois funcionam como filtros biológicos de poluentes. Os manguezais também oferecem proteção à linha da costa e contra eventos extremos, impedindo a erosão e absorvendo os impactos de ondas. Eles ainda abrigam uma rica biodiversidade em escalas variadas de tamanho. Microrganismos presentes no sedimento dos manguezais são pouco conhecidos, mas, certamente, vamos descobrir propriedades incríveis, como a capacidade de degradar poluentes ou até mesmo usos medicinais.

O conceito de “carbono azul” está fortemente ligado aos manguezais. Como, na sua opinião, esses ecossistemas contribuem para o enfrentamento das mudanças climáticas e com a mitigação de seus impactos?

Muitos desses serviços ecossistêmicos geram benefícios locais. Dentro desse contexto, as pessoas que vivem longe das regiões costeiras podem pensar que não se beneficiam com os manguezais. Mas, ao entender que os manguezais são sumidouros de carbono, que chamamos de “carbono azul”, percebemos que esse ecossistema é um grande agente de resiliência frente às mudanças climáticas.

Estudos recentes mostram uma enorme capacidade de carbono assimilado nas plantas e no sedimento do manguezal, muito superior a outros biomas, como o Cerrado e a Floresta Amazônica. E o mais interessante é que foi provado que cada pequeno pedaço de manguezal importa.

Como você avalia o papel do projeto “Entre Mangues e Caranguejos” a conservação dos manguezais, especialmente, em garantir geração de renda as comunidades locais e a preservação do equilíbrio do ecossistema?

No litoral norte do Paraná, temos manguezais bem conservados, tanto por força de Lei, pois praticamente toda a extensão deste ecossistema está inserido na Estação Ecológica de Guaraqueçaba, sob responsabilidade do ICMBIO, quanto pelo fato de que existem ações de extrativismo no manguezal, principalmente relacionados ao caranguejo. Até pouco tempo atrás não víamos o uso da madeira para carvão ou a supressão expressiva da vegetação, como ocorre em outros lugares. Recentemente temos ouvido relatos do usado da madeira por força do elevado preço do gás de cozinha. Isso demonstra a vulnerabilidade social das comunidades do entorno. Ainda há questões em relação ao caranguejo que precisam ser respondidas, comoo impacto causado pelo extrativismo na conservação deste ecossistema, em especial no interior da Estação Ecológica de Guaraqueçaba. Afinal, o caranguejo está acabando? As capturas estão estáveis? Existem relatos das comunidades sobre a diminuição da quantidade e do tamanho dos caranguejos, mas esses relatos diferem dependendo da região do litoral do Paraná. É aí que o projeto apoiado pelo edital Floresta Viva entra, como uma forma de dar voz a essas preocupações e anseios das comunidades do entorno das Unidades de Conservação. A questão do caranguejo é complexa e não será resolvida com uma ou duas iniciativas. É necessário considerar todas as variáveis que caracterizam o território, e qualquer medida de manejo que não seja construída com as pessoas que atualmente utilizam o recurso está fadada ao fracasso.

O projeto “entre mangues e caranguejos” irá apoiar o diálogo e a capacitação das comunidades no entorno da Reserva Natural Papagaio-de-Cara-Roxa visando ampliar a comunicação com o órgão gestor do território, o ICMBio e com os órgãos ambientais como IAT e IBAMA que regulamentam a coleta do caranguejo no estado. A proposta do projeto é que esses diálogos e capacitações possam melhorar a relação entre os atores envolvidos e fomentar outras fontes de renda para as comunidades locais como o “turismo de observação de manguezais” como fonte alternativa de renda e redução de pressão desse importante ambiente.

A conservação também depende do envolvimento das comunidades locais. Como as comunidades tradicionais estão sendo integradas ao projeto e quais benefícios sociais e econômicos já podem ser percebidos?

Como pesquisadora e professora, meu anseio é que nos próximos anos possamos consolidar ações efetivas de conservação dos manguezais da Estação Ecológica de Guaraqueçaba e que um processo inovador de gestão represente um ganho efetivo a toda a sociedade.  Espero que, ao longo da minha carreira, eu veja comunitários, pesquisadores e gestores todos juntos debruçados nessa causa.

Como o projeto “Entre Mangues e Caranguejos” se insere no contexto do monitoramento em rede e o que diferencia o trabalho realizado no litoral paranaense de outras iniciativas similares no Brasil?

As florestas adjacentes aos manguezais fornecem matéria orgânica terrestre e fluxo de água doce para esse bioma. Os manguezais, por sua vez, protegem as florestas de erosão e do avanço do mar. Esses ambientes trocam nutrientes entre si. Com o projeto, teremos a oportunidade de avaliar futuramente os efeitos da restauração das bacias de contribuição, na vegetação dos manguezais e na população de caranguejos. Sabemos que existem fluxos de nutrientes, matéria orgânica, água e espécies, que fazem com que os manguezais e as florestas adjacentes constituam um sistema interdependente. Nesse projeto, vamos ter a oportunidade de avaliar esses efeitos daqui a alguns anos.

Quais são as principais metas para o futuro e as inovações esperadas?

Os monitoramentos participativos são uma meta para o futuro. Ver a própria comunidade monitorando e discutindo o que está acontecendo no território é uma das metas para o futuro. Isso, por si só, já é inovador, principalmente na nossa região. Nos manguezais amazônicos, isso já é uma realidade em algumas comunidades. Se está dando certo lá, certamente dará certo aqui.

Que mensagem você deixaria para as pessoas sobre a importância de proteger os manguezais?

Para as pessoas que estão mais distantes da realidade, eu deixo uma mensagem: informem-se, conheçam os manguezais. Além de todos os benefícios que oferecem, os manguezais são locais de uma beleza cênica ímpar, que cura a alma.

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