A árvore que ergueu impérios
Ela salvou a humanidade da “peste das pestes”, ergueu impérios e o primeiro cartel farmacêutico do mundo, ajudou os aliados a vencerem a Segunda Guerra Mundial e foi parar na água tônica. Mas, o que essa história nos diz sobre o momento que vivemos e como a bioeconomia é a grande oportunidade para o Brasil no século 21?
Junho de 2020 bateu o recorde dos últimos 13 anos em queimadas na Amazônia brasileira. Foi o mês, também, em que fundos de investimento internacionais, operadores de 3,7 trilhões de dólares, alertaram as autoridades brasileiras que o fracasso do governo em proteger as florestas os fazem reconsiderar nosso país como o destino de seus investimentos. O governo não se preocupa, nega auxílio a indígenas para combater a COVID-19, enquanto o anti-ministro do Meio Ambiente, condenado por improbidade administrativa, segue entregando a encomenda: uma boiada para desmontar a política ambiental do país. Em paralelo, o Presidente desdenha diariamente da pandemia que já matou mais de 60 mil brasileiros e brasileiras, incentivando a ocupação ilegal de terras públicas protegidas, regularizando grileiros e anistiando criminosos que desmatam nossas florestas. O Palácio do Planalto parece com a caverna da série DARK, onde a cidadezinha de Widen tem uma caverna embaixo de uma usina nuclear que permite a viagem no tempo. Leva ao passado e ao futuro. O futuro é o caos após um acidente na usina e o passado apresenta a energia nuclear como a melhor opção.
Cada vez que o Presidente aparece, abre a boca ou assina um documento é como se entrássemos na caverna. É uma mistura do futuro caótico com crenças do século 19.
Uma frase famosa do irlandês Edmund Burke diz que “o povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la”. Discordo, em parte. Tem coisas na história que nos ensinam e inspiram: devemos seguir seus passos. No Brasil de hoje, um pequeno grupo criminoso quer repetir o período ditatorial que vivemos no passado. Numa pandemia que derivou para crises de saúde, economia e política o presidente poderia se inspirar na história de como a humanidade conseguiu mitigar o impacto da malária, conhecida como a “peste das pestes”, mas história não é muito a praia dele. Prefere politizar a ciência, deixando o país há meses sem Ministro da Saúde, já que nenhum Ministro sério vai aceitar receitar um remédio, que o Presidente supõe curar a COVID-19.
A malária é, assim como o coronavírus, uma doença zoonótica. Sua origem é um parasita do gênero Plasmodium, encontrado em chimpanzés na África Equatorial. A humanidade já a conhece há um bom tempo. O desenvolvimento da agricultura e o surgimento das cidades impulsionou o crescimento da população do Plasmodium, que está entre nós há pelo menos 50 mil anos. Ao longo da história, ela foi relatada por antigos escritos chineses, ficou conhecida como “febre romana” (e pode ter, inclusive, contribuído para a queda do império romano), ou “febre dos pântanos”. Ela chega nos humanos através da picada de mosquitos e ainda não há vacinas, mas alguns remédios tratam a doença. Entre eles, está a cloroquina. A mesma, “receitada” pelo Presidente para combater a COVID-19, produzida aos milhões pelo exército e encalhada depois que estudos científicos confirmaram que ela não tem eficácia. Como ele não gosta de história, certamente desconhece que a cloroquina só existe por causa de uma árvore da Amazônia.
A Cinchona é um gênero de árvores da Amazônia andina e é dela que se extraiu originalmente o quinino ou quinina: um pó branco, origem da quina, medicamento febrífugo, tônico e antisséptico, o primeiro a conseguir combater com eficácia a malária em larga escala.
Durante os séculos XV e XVI, uma transferência em larga escala de plantas, animais, cultura, populações humanas, tecnologia, doenças e ideias entre as Américas, a África Ocidental e a Europa, conhecida como troca colombiana em referência ao navegador Cristóvão Colombo, trouxe a malária para as Américas. Ela não existia aqui. A chegada dos Europeus também trouxe massacre. Há 350 anos, os espanhóis empreendiam o genocídio do povo Inca na América do Sul e duas histórias tentam contar como os poderes contra a malária da Cinchona teriam sido descobertos.
Uma delas diz que alguns incas perceberam onças doentes mordendo o tronco de algumas árvores e se curavam. Outra, contada pelos espanhóis, fala que um soldado espanhol, com todos os sintomas da malária, não conseguiu prosseguir com o exército e foi deixado para trás, condenado a morte. Com sede, teria chegado a um lago rastejando e bebeu água, dormindo em seguida. Quando acordou, estava melhor e lembrou então que um tronco rachado de uma grande árvore estava caído no lago e a água era amarga. Concluiu que a árvore, seu tronco, teria o poder da cura para a malária.
O batismo da árvore também tem uma origem controversa: a Condessa de Chinchón, esposa do Vice-Rei do Peru, Ana de Osório, teria adoecido de malária e sido curada pelo pó de quinina. Ela, então, coletou mais cascas da árvore e dado a outros doentes que também foram curados. Eles passaram a chamar o remédio de pó da condessa. Ana teria levado uma grande quantidade do pó quando retornou a Espanha. Porém, em 1940, um diário do Conde de Chinchón desmente a versão e diz que Ana nunca esteve na América. Entretanto, influenciado pela história, em 1742, o botânico suíço Carl Lineu batizou de Cinchona o gênero das árvores que produzem quinina, englobando cerca de 40 espécies.
Na verdade, a Cinchona já era conhecida pela farmacopeia inca e teria sido descrita pela primeira vez pelo padre jesuíta Antonio de la Calancha, na sua Crónica moralizada del orden de San Agustín en el Perú, de 1633:
“Uma árvore cresce, que eles chamam árvore da febre, na região de Loxa, cuja casca tem cor de canela. Quando transformada em pó, juntando-se uma quantidade equivalente ao peso de duas moedas de prata, e oferecida ao paciente como bebida, ela cura febre e … tem curado miraculosamente em Lima.”
O Plasmodium entra no ser humano, destrói as células vermelhas do sangue (hemácias) e provoca febres altas e intensas a cada dois ou três dias, seguidos de calafrios, dores de cabeça e no corpo, vômitos e suor excessivo. A quinina controla a febre, alivia as dores e mata os parasitas. Esse mesmo pó da casca da árvore é usado para câimbras musculares, distúrbios cardíacos e é parte importante da receita da água tônica. Em 1820, Pierre Pelletier e Joseph Caventou, dois químicos franceses, conseguiram extrair a quinina da casca da Cinchona. Publicaram todos os detalhes de como chegaram ao resultado para que todos pudessem produzir o remédio, sem cobrar por isso. No entanto, com a quinina sendo um insumo tão procurado, a venda de casca de Cinchona passou a ser um negócio muito lucrativo. Bolívia, Colômbia, Equador e Peru determinaram a proibição da exportação de sementes e plantas numa tentativa de manter o monopólio da produção e do comércio.
Porém, numa história que mistura espionagem, biopirataria e contrabando, as sementes foram parar na ilha de Java, controlada pela Holanda depois de terem sido recusadas pelos britânicos. França, Grã-Bretanha e Holanda buscavam quebrar o monopólio enviando expedições para obter sementes e plantas, geralmente contrabandeando-as ilegalmente para que pudessem ser replantadas em suas colônias. Um traficante australiano conseguiu convencer um índio Aymara a contrabandear sementes de uma espécie encontrada na fronteira Bolívia/Peru de Cinchona que continha mais alcaloides, e, consequentemente, mais quinina. Charles Ledjer, o contrabandista, vendeu as sementes por 20 dólares para o governo Holandês em 1861, enquanto que Manuel Incra Mamani, o nativo Aymara, não recebeu nada. Essa espécie foi batizada Cinchona ledgeriana em homenagem ao contrabandista, já Manuel Incra Mamani morreu depois de ser surrado e preso durante outra viagem de coleta de sementes, em 1871. Em 1930, a ilha de Java produzia 97% de toda quinina usada no mundo, que era levada para ser processada em Amsterdam e distribuída. A América teve roubada mais uma de suas fontes de riqueza.
A Grã Bretanha investia em uma extensa rede de jardins botânicos distribuídos pelo seu império colonial. Eles pesquisavam e domesticavam plantas através da transferência entres colônias, depois de estudá-las. Essa rede, comandada pelo Kew Gardens, em Londres, se estendia por mais de cem jardins botânicos espalhados pelas colônias. Em Kew, a Cinchona foi para uma estufa especialmente construída para receber suas sementes, traficadas, e outras sementes foram enviadas a Índia, para os jardins botânicos de Ootacamund e Calcutá, cruciais para a seleção de espécies e para o desenvolvimento de métodos de plantio e colheita. A árvore andina, domesticada, começou a ser cultivada na Índia.
Em paralelo, os holandeses criaram plantações, com sementes traficadas, na sua colônia em Java, hoje Indonésia, entre 1850 e 1870, em um esforço que envolveu plantadores particulares, o governo holandês e cientistas. Em 1880, a superprodução de quinina em Java reduziu o preço e forçou a mudança de cultura pelos plantadores britânicos na Índia.
Associações europeias de produtores de quinina, controlavam o processo industrial de derivar o quinino da árvore de Cinchona, manipulavam o mercado, mantendo o preço da casca baixo e o de seus produtos manufaturados alto de forma artificial, especialmente a quinina. Em 1913, depois de uma reação do governo holandês, estabeleceu-se o Acordo do Quinino, definindo preços fixos para a casca de Cinchona. Propagandeado como uma garantia de suprimento constante de quinino e em nome do bem-estar da humanidade, na prática, o Acordo do Quinino fundou o primeiro cartel farmacêutico do mundo.
Durante a Segunda Guerra Mundial, mais de 600.000 soldados americanos na África e Pacífico Sul haviam contraído malária com uma média de mortalidade de 10%. Quando os alemães invadiram e tomaram a Holanda em 1940, o Japão ocupou a Indonésia em 1942, os aliados ficaram sem acesso a quinina. Mesmo que o último avião aliado a deixar as Filipinas, antes desta cair nas mãos dos japoneses, levasse 4 milhões de sementes de Cinchona que foram sem escalas para Maryland nos EUA, numa tentativa de suprir as tropas de remédio contra a malária, não adiantou. Germinadas, embarcaram para a Costa Rica para serem plantadas em um clima tropical, e, até mesmo, expedições foram enviadas ao Andes para buscar quinina. A guerra não dava trégua e, em paralelo, uma corrida química levou a sintetização em laboratório em 1944 por Robert Woodward e William Doering. Isso permitiu que as tropas aliadas não sucumbissem a malária e foi parte importante da vitória no Pacifico.
Estima-se em 250.000 o número de espécies vegetais usadas na medicina popular em todo o mundo, mas menos de 10% delas tem sua atividade farmacológica e bioquímica estudada. O Brasil é o país mais megadiverso do planeta. Nossa abundante variedade de vida se traduz em mais de 20% do número total de espécies do planeta. Temos 48 mil espécies de plantas registradas e todo ano novas 250 são descobertas. O abacaxi, o amendoim, a castanha do Brasil (ou do Pará), a mandioca, o caju, o açaí e a carnaúba são originárias do Brasil e possuem importância econômica mundial. Além disso, há uma preciosa sociodiversidade entre os mais de 200 povos indígenas, comunidades quilombolas, caiçaras, seringueiros, assim como agricultores tradicionais, detentores de muito conhecimento tradicional sobre uso e conservação de nossa biodiversidade.
O site do Ministério do Meio Ambiente traz uma constatação de como não sabemos explorar essa potência que possuímos: “…apesar de toda esta riqueza em forma de conhecimentos e de espécies nativas, a maior parte das atividades econômicas nacionais se baseia em espécies exóticas: na agricultura, com cana-de-açúcar da Nova Guiné, café da Etiópia, arroz das Filipinas, soja e laranja da China, cacau do México e trigo asiático; na silvicultura, com eucaliptos da Austrália e pinheiros da América Central; na pecuária, com bovinos da Índia, equinos da Ásia e capins africanos; na piscicultura, com carpas da China e tilápias da África Oriental; e na apicultura, com variedades de abelha provenientes da Europa e da África”. É certo que temos grandes exemplos de agroindústria respeitando nossa sociobiodiversidade e como parte de sua estratégia empresarial. Porém, nossa estrutura econômica ainda foca massivamente na produção de alimentos como commodities para abastecer mercados internacionais, com baixíssimo valor agregado e alto impacto socioambiental.
Conhecemos menos de 2 milhões das estimadas 100 milhões de diferentes espécies vivas do planeta. A biodiversidade é esse conjunto de vida: toda a variedade de espécies da flora, fauna e micro-organismos; as funções ecológicas desempenhadas por estes organismos nos ecossistemas; e as comunidades, habitats e ecossistemas formados por eles; sendo responsável pela estabilidade dos ecossistemas, pelos processos naturais e produtos fornecidos por eles e pelas espécies que modificam a biosfera. Assim, espécies, processos, sistemas e ecossistemas criam coletivamente as bases da vida na Terra: alimentos, água e oxigênio, além de medicamentos, combustíveis e um clima estável, entre tantos outros benefícios. A perda de florestas e a extinção de espécies representam o maior risco para a economia global, de acordo com o último relatório do Fórum Econômico Mundial. A nossa biodiversidade precisa de mais investimento em pesquisa e preservação que garanta acesso a recursos genéticos presentes em nossas florestas. O valor da biodiversidade ainda não conhecida é incalculável e em sua conservação e uso sustentável estão as bases da bioeconomia.
Para termos uma ideia do potencial da biodiversidade, a busca pela sintetização do princípio ativo da quinina presente na Cinchona gerou um novo corante quando o químico Willian Perkin acabou desenvolvendo acidentalmente e passou a abastecer a nascente indústria britânica da Revolução Industrial em 1856. Isto deu origem à moderna indústria química de corantes, perfumaria e medicamentos. Sua descoberta influenciou o destino de várias empresas, principalmente a BASF (Badische Anilin-& Soda-Fabrik), AGFA (Aktiengesellschaft für Anilinfabrikation) Bayer e Hoechst, que diversificaram sua produção em vários outros segmentos, transformando-as em impérios que valem bilhões. Compostos ativos descobertos a partir de produtos naturais podem ser otimizados por meio da química, gerar emprego, renda e melhorar a vida das pessoas. A Bayer ganhou impulso também com o desenvolvimento da Aspirina, que teve seu princípio ativo sintetizado da casca de uma outra árvore: o salgueiro, e a Alemanha está longe, bem longe, de figurar entre os países de maior biodiversidade do mundo.
Segundo dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), atualmente a bioeconomia movimenta cerca de 2 trilhões de euros no mercado mundial e gera 22 milhões de empregos. Investir na bioeconomia é a chave para alcançarmos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas (ONU), mas o Brasil ainda não entrou no jogo, apesar do nosso potencial quando se fala no principal insumo da bioeconomia: a biodiversidade.
Apesar do Brasil ser o país com maior riqueza vegetal do mundo, seguido pela China, Indonésia, México e África do Sul, ainda há enormes desafios para a identificação do nosso real potencial. Existem muito mais informações sobre as regiões Sul e Sudeste onde se concentram as coletas de plantas, os grupos de especialistas e as instituições de pesquisa, do que nas outras regiões. Em função disso, estima-se que, só no estado do Amazonas, deve haver pelo menos mais 20 mil espécies ainda não amostradas. A Bahia é o segundo estado com maio diversidade do país e também é um dos que mais desmata. A região norte tem um outro desafio: identificar a biodiversidade antes que a floresta seja dizimada. O desmatamento anda mais rápido que a capacidade de a conhecermos e, sem tempo para conhecermos a fundo a biodiversidade da floresta, perdemos a oportunidade de transformá-la em emprego, renda, negócios e prosperidade.
Alguns movimentos, mesmo que tímidos, vêm se configurando. Empresas do Polo Industrial de Manaus são obrigadas a repassar 5% do que faturam à pesquisa tecnológica, o que representa 700 milhões de reais anualmente. Era uma determinação restrita às inovações do mundo digital, já que esse mecanismo está previsto na Lei da Informática, mas recentemente uma mudança nessa mesma lei, passou a permitir que o acesso aos recursos possa ser também por projetos de biotecnologia, entre outros ramos da bioeconomia. Porém, para que a bioeconomia desponte é preciso mais.
Especialistas apontam outras quatro frentes necessárias: disponibilidade de insumos naturais (ainda temos e teremos se não destruirmos a floresta), leis, instituições maduras para uso desses recursos, financiamento e capital humano capacitado para a biotecnologia do século XXI. É, sem dúvidas, a melhor forma do Brasil sair da cultura do extrativismo e entrar na economia do conhecimento.
Mas, o horizonte para a bioeconomia no Brasil não é muito animador. O Presidente, que já foi multado por atentar contra a biodiversidade ao pescar em uma estação ecológica, tem criado barreiras para a fiscalização, aplicação e recolhimento de multas, além de se posicionar publicamente contra ações para combater desmatadores criminosos na Amazônia, forçando a demissão de servidores do IBAMA. Mesmo com números crescentes de desmatamento, o número de multas aplicadas pelo IBAMA é o menor em 24 anos. A Mata Atlântica vinha se recuperando lentamente, entretanto, teve 27,2% de aumento no desmatamento entre 2018 e 2019. Em 2018, lideramos o desmatamento de florestas primárias no mundo, segundo a plataforma Global Forest Watch. Enquanto isso, o Ministro da Comunicação relatou recentemente que caso alguém queira sair de Manaus de avião e ver Mata Atlântica, “você fica ali três horas sem parar vendo Mata Atlântica, atrás de Mata Atlântica”, e o Brasil passa vergonha atrás de vergonha.
Para Kristalina Georgieva, economista búlgara e atual chefe do FMI, “quem não gosta de pandemias, não vai gostar nada de crises climáticas”, ao citar como o FMI enxerga a retomada econômica pós coronavírus. Se até o FMI acredita que uma economia de baixo carbono, mais resiliente do ponto de vista climático é a nossa única opção, é por que já passamos do ponto de retorno. A Europa já estrutura o seu Green New Deal, pavimentando mais uma vez a sua liderança.
Se uma única árvore da Amazônia possibilitou o surgimento de impérios industriais e rendeu bilhões de dólares a alemães, britânicos, holandeses e americanos, onde essa árvore sequer nascia, quanto nós temos em nossas florestas? Até quando vamos seguir queimando dinheiro e destruindo nossas florestas para passar a boiada do atraso?
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A crise já estava aqui
O pangolim é um pequeno mamífero, de hábitos noturnos, que lembra fisicamente o nosso tatu. Come formigas e térmitas, as farejando até dois metros abaixo da terra e enchendo a barriga com até 70 mil formigas por ano usando uma língua do tamanho do seu corpo. Pra se proteger, emite um cheiro ruim e se enrosca, como nosso tatu bola, para usar suas escamas como barreira ao ataque inimigo. São oito espécies diferentes que vivem em zonas tropicais da Ásia e África. Ele está em risco de extinção e sua caça e venda são proibidos.
O pangolim é o animal mais caçado e traficado do mundo. Se estima que represente cerca de 20% de todo o comércio ilegal de espécies selvagens e que na última década mais de um milhão tenha sido capturado. Um animal vivo rende escamas, que depois de tostadas, moídas e cozidas, são usadas na medicina tradicional chinesa para o tratamento de malária, surdez ou reumatismo. Cada quilo de escamas precisa de três ou quatro animais mortos. Um pangolim vivo chega a custar até 600 dólares, sendo a sua carne, geralmente ensopada com gengibre e citronela, muito procurada pelas elites endinheiradas para demonstrar status.
Na China, é comum a existência de mercados onde se vende animais vivos, que escolhidos pelos compradores são abatidos, esquartejados e embalados alguns minutos depois. Os animais, das mais diversas espécies e portes, ficam em gaiolas amontoados e misturados de forma caótica, seres capturados em ecossistemas muito diferentes, entre si, trocam fluidos como sangue, fezes, urina e pus, o que, somado ao stress e baixa imunidade cria o ambiente ideal para a transmissão de vírus entre espécies.
Até agora, o pangolim é um dos principais ¨suspeitos¨ de ter sido o hospedeiro intermediário do novo coronavírus através de uma interação forçada com morcegos no mercado de Wuhan, China. Pesquisa de cientistas de diversas universidades chinesas publicada na revista Nature, concluiu que o pangolim é um potencial hospedeiro intermediário para a COVID-19. Os cientistas analisaram pangolins-malaios (Manis javanica) resgatados do tráfico de animais e encontraram diversos vírus parecidos com o que está infectando humanos atualmente.
Se o pangolim ainda é suspeito, por outro lado já há uma certeza: os morcegos carregam o coronavírus. Morcegos são conhecidos por serem hospedeiros de diversos vírus sem desenvolver as doenças. Eles foram os hospedeiros de outros dois tipos de coronavírus que já causaram problemas globais de saúde: o vírus da SARS (Síndrome respiratória aguda grave), que surgiu na China em 2002 e causou 800 mortes no mundo, e o da MERS (Síndrome respiratória do Oriente Médio), que também causou mortes quando surgiu na Arábia Saudita em 2012. Existem diversas cepas de coronavirus circulando, ou que já circularam entre os humanos: 229E, NL63, OC43, HKU, SARS COV, SARS-COV-2 e MERS-COV, com letalidades que chegam a 32%.
A regra geral é que esses coronavírus precisam passar de um morcego para um hospedeiro intermediário, outro animal, e antes passar pela mutação necessária para infectar seres humanos. No caso da SARS, por exemplo, a civeta, outro mamífero de zonas tropicais, foi identificada como a hospedeira. As civetas são exploradas por exemplo para produzir café, vendido como elixir e também são facilmente encontradas nos mercados chineses. Já a MERS, provavelmente chegou nos humanos através de dromedários. Outra pesquisa, também publicada na revista Nature, demonstrou que o código genético do coronavírus que nos infecta é 96% semelhante aos que circulam em morcegos na China.
Não só a interação forçada em mercados tem sido responsável pela transmissão zoonótica dos vírus. Em 1998, o desmatamento em uma região da Malásia fez com que morcegos começassem a migrar em busca de alimento e estabeleceram-se em uma nova região onde a produção de mangas se dava junto com a criação de porcos. Os morcegos comiam as mangas que, depois caíam em cima dos porcos, que também as comiam. Um vírus carregado pelos morcegos pulou para os porcos, passou por uma mutação e pulou para humanos. Desde então, pessoas estão morrendo na Malásia, Cingapura, Bangladesh e Índia do vírus nipah, nome de um vilarejo na Malásia onde os primeiros casos foram descobertos. O HIV veio dos chimpanzés e o Ebola também dos morcegos.
Outra causa tem sido a crise climática, com o aumento médio da temperatura do planeta causada por nossas atividades. O ciclo reprodutivo de muitas plantas mudou em função da alteração do clima. Isso fez com que árvores frutíferas mudassem seu padrão e diversos animais, que antes não se cruzavam na natureza, busquem a mesma árvore para se alimentar. Podem comer a mesma fruta, trocar fluidos e depois se conectarem com humanos. Um pulo na transmissão do vírus causado por nós mesmos, pela redução drástica de seus habitats naturais, forçando uma convivência que não existia na natureza.
Animais domesticados também nos apresentam novos vírus. Sarampo e tuberculose vieram da nossa relação com rebanhos de gado durante o processo de domesticação. A gripe e suas mutações vêm de aves, em especial dos frangos e porcos. Essa produção em escala de animais apresenta outro risco: algumas criações recebem altas doses de antibióticos, que ajudam na seleção de bactérias cada vez mais resistentes que depois são consumidas por humanos.
Exploração de animais, desmatamento, mudanças climáticas, enfim: nosso modelo de desenvolvimento e consumo está em aguda crise há algum tempo e tem produzido surtos, epidemias e agora uma pandemia de escala inédita com efeitos sociais, ecológicos e econômicos. O planeta é um sistema. Nada acontece por acaso. E, cada vez mais alto, a ciência e a natureza vêm nos gritando que uma mudança de rota é nossa única opção. Nossa atual situação fala por si só.
André Fraga é Engenheiro Ambiental e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Arborização Urbana.
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Antropoceno: Crise do Clima e Pandemias
Não se fala em outra coisa. Um ser que ninguém vê a olho nu, pode estar em todo lugar, tendo viajado o mundo inteiro e alterado a vida de famílias, cidades, estados e países. Um vírus originário da nossa relação, nada sustentável, com animais silvestres (nesse caso um morcego), se alastra de forma devastadora e, não podia ser diferente, se transformou na prioridade número zero para o planeta.
Quem não se sentiu em um filme de ficção cientifica, naquela situação que ninguém imaginava realmente acontecer? A pandemia saiu do dicionário e virou verbete onipresente na TV, Jornais, Internet e conversas pelo celular, afinal não temos mais as conversas de bar.
A consolidação e aprofundamento da chamada globalização, o mais alto índice de urbanização da história e uma desigualdade social que ainda nos envergonha (ou deveria), são ingredientes que transformaram o Coronavírus presente em todos os continentes. Porém, há um elemento fundamental nesse processo: não podemos deixar de lado que vivemos a Era do Antropoceno. Nossa era se caracteriza pelo impacto que o homem tem causado nos ecossistemas.
Em prol do desenvolvimento econômico modifica de forma irreparável as condições climáticas no planeta, evidenciando um modelo de globalização e da exploração do ambiente já insustentável. Por outro lado, a Covid-19 tem sido chamado de Vírus da “desglobalização”, em função da forma como governos de todo o mundo vêm reagindo para conter o avanço do contágio: fechar portos, aeroportos, estradas e rodoviárias.
Uma outra reflexão importante é que a crise climática passou pra lista secundária de prioridades. É natural e necessário que o combate ao vírus seja a única prioridade do momento, mas como sairemos dessa grande confusão?
A Covid-19 está mostrando como subestimamos os impactos da crise climática, em especial, dos riscos à saúde que enfrentamos diariamente. A poluição do ar é uma das principais causas de mortes no mundo. De acordo com estudo publicado no European Heart Journal, ela foi a causa de 8,8 milhões de mortes em 2015, a partir de doenças cardiovasculares como ataque cardíaco e AVC, e já ultrapassa as causadas pelo consumo de tabaco que matou 7,2 milhões de pessoas em 2015, segundo dados da OMS. No Brasil, essas mortes aumentaram 14% em 10 anos. Em 2006, 38.782 morreram, número que pulou para 44.228 em 2016, de acordo com o estudo Saúde Brasil 2018. Internações por problemas respiratórios custaram R$ 1,3 bilhão ao SUS em 2018.
Estudos recentes revelam que a infecção pelo Coronavírus é maior em pessoas expostas ao cigarro e a poluição. Só na China, a poluição do ar matou 1,6 milhões de pessoas por ano e em todo o mundo 7 milhões. Durante este surto na China, em dois meses, cerca de 3200 pessoas morreram devido a poluição do ar, um número maior que o Covid-19.
Essa pandemia traz lições que deverão nortear decisões futuras para a questão climática, modificando o comportamento humano frente aos riscos sanitários e ecossistemas naturais. Tudo está interconectado e a visão de saúde no Antropoceno deve considerar a perspectiva de uma saúde planetária.
Já que estamos em casa, aproveitemos para cuidar do nosso quintal, pois a dengue não respeita quarentena. Já temos um desafio gigantesco pela frente e não precisamos de um mosquito pra nos atrapalhar, né?!
Nelzair Vianna é Pesquisadora em Saúde Pública da Fiocruz e Doutora em Ciências pela FMUSP . André Fraga é Engenheiro Ambiental e Doutorando pela Faculdade de Medicina da USP.
Artigo originalmente publicado na edição impressa do Jornal Correio* em 02/03/2020
A crise climática já afeta as economias e o setor financeiro
Em 1991, George Bush tinha “vencido” a Guerra do Golfo e nadava de braçada, favorito para as eleições enfrentando o desconhecido governador de Arkansas, Bill Clinton. O estrategista de Clinton, James Carville, acreditava que poderia vencer explorando a recessão econômica que crescia e cunhou uma frase que a campanha deveria focar: “A economia, estúpido!”. Clinton venceu, tirou os EUA da recessão e foi reeleito. A frase é usada até hoje e adaptada a diversos contextos.
Pula para 2020. O mundo vive um dos seus maiores e mais urgentes desafios civilizatórios: vencer a crise climática. Mesmo assim, alguns líderes globais seguem dando de ombros para alertas científicos e coices da natureza. Nesse contexto, o Fórum Econômico Mundial se reuniu mais uma vez em Davos, mas, agora, o “Relatório de Riscos Globais 2020”, documento lançado dias antes do encontro anual, e que serve para subsidiar os debates, apontou que os cinco maiores riscos para a economia mundial nos próximos dez anos estão diretamente associados à crise climática: eventos climáticos extremos; falhas no combate à mudança climática; perda de biodiversidade e esgotamento de recursos; catástrofes naturais e desastres ambientais causados pelo homem.
Os efeitos das mudanças climáticas estão colocados como riscos de curto e longo prazo, e é a primeira vez em 15 anos que temas ambientais dominaram os debates e preocupações do Fórum.
O relatório aponta que a crise climática se aprofunda ano após ano e que poderá colapsar a economia mundial aos moldes da crise financeira de 2008. Essa constatação é baseada na análise de múltiplos indicadores ambientais, sociais e econômicos e atribui urgência na ação para debelar a crise. O relatório se soma a estudos do IPCC, Banco Mundial e FMI, que apontam para a mesma direção.
A crise climática já afeta as economias e o setor financeiro: o aumento da ocorrência de eventos causa danos à infraestrutura, à propriedade e à terra e os países mais pobres são os mais expostos. Só em 2018, desastres naturais geraram custos de US$ 165 bilhões no mundo, podendo chegar a US$ 314 bilhões em 2030 segundo o FMI, enquanto 100 milhões de pessoas podem ser empurradas para a extrema pobreza, de acordo com o Banco Mundial, que estima que quase 75% das perdas econômicas causadas por desastres naturais desde 1980 são atribuídas a extremos climáticos.
Há também os custos das mudanças necessárias em todos os setores para a transição para uma economia de baixo carbono: quanto maior a demora, maior será o preço. “As empresas e mercados serão forçados a se ajustar mais rapidamente, o que poderia levar a custos mais altos, mais disrupções econômicas ou intervenções draconianas de formuladores de políticas em pânico”, diz o relatório. Apenas para as 200 maiores empresas do planeta é estimado um custo de US$ 1 trilhão, caso não haja ação contra a crise do clima.
Mas, como crises são também geradoras de oportunidades, a transição para uma economia de baixo carbono e adaptação aos efeitos da crise pode render US$ 4,2 trilhões, com US$ 4 em benefício para cada US$ 1 investido.
Encerramos a década mais quente da história, e temos a chance de fazer a próxima que nos levará a um planeta equilibrado e justo. Como diz o velho ditado popular: a gente só sente quando dói no bolso. Já estamos todos sentindo.
André Fraga é engenheiro ambiental e secretário de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência de Salvador. Artigo publicado originalmente em 29 de fevereiro de 2020, no Jornal Correio.
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Para-brisa limpo, prato vazio
Nossa história já presenciou cinco extinções em massa, que funcionaram como um recomeço evolucionário. Há 450 milhões de anos, 86% de todas as espécies vivas foram mortas. Setenta milhões de anos depois, 75%. Cem milhões de anos após, 96%. Cinquenta milhões de anos depois, 80%, e 150 milhões de anos depois, mais uma vez, 75%. De todas elas, apenas uma, a que matou os dinossauros, foi provocada por um asteroide. Todas as outras foram em função de mudanças no clima da Terra. Uma sexta extinção está em marcha, e você pode percebê-la de uma forma mais fácil que imagina.
A sensação de que o número de insetos que se espatifam nos para-brisas tem diminuído é uma pista para percebermos como a população de abelhas, gafanhotos, libélulas, formigas, besouros, borboletas, entre as mais de 1,5 milhão de espécies conhecidas – três vezes mais do que o número de espécies de outros animais somadas – tem diminuído. E esse declínio pode significar a extinção de uma boa parte da vida do planeta.
Pesquisadores da Universidade de Sydney e da Academia Chinesa de Ciências Agrárias perceberam que os insetos estão caminhando para a extinção, o que nos levaria a um “colapso catastrófico dos ecossistemas da natureza”, ao analisaram 73 estudos de longo prazo sobre o declínio de insetos ao redor do mundo. A conclusão é de que mais de 40% das espécies de insetos estão sofrendo quedas populacionais em um ritmo constante, e a uma velocidade oito vezes maior, em média, do que a dos mamíferos, aves e répteis. Estudo publicado na Science, analisando dados de pesquisas de campo da Sociedade de Entomologia de Krefeld, Alemanha, desde 1989, constatou que a biomassa de insetos que fica presa em equipamentos de captura diminuiu 80%.
As abelhas venceram o plâncton na “final” da escolha realizada pelo Instituto EarthWatch, em novembro de 2008. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), abelhas ou outros insetos são necessários na polinização de cerca de 84% das culturas para consumo humano. Estudo da própria FAO, que comparou 344 regiões agrícolas na África, na Ásia e na América Latina, concluiu que a produtividade é mais baixa nos terrenos que atraíram um menor número de abelhas durante a temporada principal de floração.
Diversas são as causas apontadas desse declínio: a urbanização, a agricultura intensiva, o uso de pesticidas e as mudanças climáticas que alteram, por exemplo, os períodos de sincronia entre a floração das plantas e a chegada ou a eclosão dos insetos. Sem eles, o colapso da cadeia alimentar, causado por uma cascara trófica de baixo para cima, atingirá desde predadores até as plantas, aniquilando ecossistemas inteiros, com prejuízos econômicos incalculáveis.
Para impedir essa tragédia, é urgente uma drástica redução no uso de produtos químicos como herbicidas, fungicidas e pesticidas, que, quando aplicados, atingem espécies não-alvo, e os neonicotinoides, que têm sido associados ao declínio mundial das abelhas. Infelizmente, de maneira irresponsável, o Brasil bateu recordes na liberação de quase 200 novos agrotóxicos só este ano, alguns proibidos na Europa há mais de uma década.
O desaparecimento dos insetos é o golpe final no complexo sistema que sustenta a vida na Terra. Se eles desaparecerem, não irão sozinhos.
Artigo publicado na edição impressa do Jornal Correio em 04/07/2019.
Engenheiro Ambiental, pós-graduado em Gerenciamento de Projetos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutorando pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), exerceu a função de secretário municipal de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência de Salvador. Ocupa a vice-presidência da Associação Nacional de Órgãos Municipais de Meio Ambiente (Anamma), foi coordenador nacional do Fórum de Secretários de Meio Ambiente das Capitais Brasileiras (CB27) por dois mandatos (2017-2019), além de representar Salvador em redes internacionais de cidades como a C40 Cities-Climate Leadership Group, 100Cidades Resilientes, Cities4Forests e ICLEI-Local Governments for Sustainability, tendo sido membro do Conselho Iclei América do Sul. Integra a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps) e o RenovaBR Cidades.